Caracterização das disciplinas de neuropsicologia em cursos de psicologia do estado de São Paulo: desafios para a formação
Characterization of neuropsychology courses in psychology programs in the state of São Paulo: challenges for the professional training
DOI: 10.24933/e-usf.v9i1.479
v.9 n.1 (2025)
Vanessa de Oliveira Antonelli1; Gabriel Capitanio Ramos de Aragão1; Vitória Carolina Dias de Oliveira1; Ricardo Franco de Lima2
1Estudantes do curso de Psicologia e membros do Projeto de Extensão “Avaliação Neuropsicológica de Crianças e Adolescentes”, Universidade São Francisco (USF).
2Professor do curso de Psicologia. Colaborador do Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Psicologia. Coordenador do Projeto de Extensão, Universidade São Francisco (USF).
ricardo.lima@usf.edu.br
RESUMO. A Neuropsicologia foi reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia como especialidade em 2004, tendo apresentado um avanço crescente nos últimos anos. Durante a graduação, os estudantes têm contato com essa área em componentes curriculares específicos, geralmente teóricos. Contudo, os aspectos práticos são abordados de forma superficial. Este estudo teve como objetivo analisar as características das disciplinas de Neuropsicologia nos cursos de Psicologia do Estado de São Paulo. Foi realizada uma análise documental dos currículos de 132 instituições de ensino superior, públicas e privadas, localizadas no Estado de São Paulo. Foram coletadas informações sobre a oferta de disciplinas relacionadas à Neuropsicologia, incluindo nome, carga horária, modalidade (presencial, EaD e híbrida), semestre de oferta e enfoque teórico/prático. Os resultados apontam para uma presença significativa dessas disciplinas nos cursos de formação. A predominância de componentes presenciais e teóricos sugere uma abordagem mais tradicional de ensino. Contudo, a diversidade de nomenclaturas e a falta de padronização na carga horária e nos conteúdos das disciplinas indicam desafios para a formação.
Palavras-chave: Neuropsicologia; Psicologia; Ensino; Universidades.
ABSTRACT. Neuropsychology was recognized by the Federal Council of Psychology as a specialty in 2004 and has shown increasing progress in recent years. During undergraduate studies, students come into contact with this field through specific curricular components, which are generally theoretical. However, the practical aspects are covered only superficially. This study aimed to analyze the characteristics of Neuropsychology courses in Psychology programs in the State of São Paulo. A documentary analysis was conducted on the curricula of 132 public and private higher education institutions located in the state. Information was collected on the offering of courses related to Neuropsychology, including name, workload, modality (in-person, distance learning, and hybrid), semester of offering, and theoretical/practical focus. The results indicate a significant presence of Neuropsychology courses in these programs. The predominance of face-to-face and theoretical subjects suggests a more traditional teaching approach. However, the diversity of nomenclature and the lack of standardization in workload and course content pose challenges to training.
Keywords: Neuropsychology; Psychology; Teaching; Universities.
A Neuropsicologia é uma área da Psicologia que investiga a relação entre o cérebro e o comportamento humano, exercendo um importante papel como campo de atuação interdisciplinar. Está inserida no escopo mais amplo das Neurociências e da Psicologia, com foco no estudo do comportamento e da cognição (PEREIRA, 2014). O termo “Neuropsicologia” foi utilizado pela primeira vez pelo neurologista William Osler em 1913, durante uma conferência nos Estados Unidos, embora o campo seja consideravelmente mais antigo (BENTON, 2000; BRUCE, 1985). Estudos de Aloajouanine, Ombredane, Duran e Luria também contribuíram significativamente para seu desenvolvimento (GLOZMAN, 2007; HAASE et al., 2012).
Como disciplina científica, a Neuropsicologia dedica-se às relações entre o cérebro e as funções cognitivas, buscando associar os processos mentais ao funcionamento cerebral, com base nos conhecimentos produzidos pelas neurociências (KRISTENSEN et al., 2001; WAJMAN, 2021). De acordo com Hazin (2018), a Neuropsicologia pode ser compreendida sob três perspectivas complementares: como disciplina clínica, ao identificar perfis de déficits cognitivos em pacientes com lesões ou disfunções cerebrais; como disciplina neurocientífica, ao investigar correlações anátomo-clínicas para compreender estruturas cerebrais e a dinâmica das funções cognitivas; e como disciplina cognitiva, ao analisar o desempenho de indivíduos em testes e formular hipóteses com base em teorias cognitivas derivadas de estudos com sujeitos saudáveis.
Os profissionais da Neuropsicologia atuam em três grandes áreas: pesquisa, avaliação e intervenção/reabilitação. Na pesquisa, busca-se compreender a relação entre a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso e os processos psicológicos, comportamentais e emocionais. No âmbito da avaliação, desenvolvem-se procedimentos diagnósticos para identificar o perfil neuropsicológico, analisando funções preservadas e comprometidas em diversos contextos. Na intervenção/reabilitação, são propostos programas para preservar, promover, habilitar ou reabilitar funções neuropsicológicas (CFP, 2022).
Essa atuação compreende avaliação, diagnóstico e intervenção em aspectos cognitivos, comportamentais e emocionais relacionados ao funcionamento do sistema nervoso, tanto em condições típicas quanto em casos de lesões ou disfunções. As avaliações neuropsicológicas são realizadas em contextos clínicos, jurídicos e periciais, com elaboração de laudos e complementação diagnóstica nas áreas de neurologia, psiquiatria e educação (CFP, 2022).
No Brasil, a Neuropsicologia foi introduzida por volta de 1975, inicialmente pela neurologia, por meio do pediatra Antonio Branco Lefévre, considerado o pioneiro da ciência neuropsicológica no país. Lefévre defendia a interdisciplinaridade entre a neurologia e a psicologia, destacando a importância de compreender e estudar os fenômenos psicológicos na formação de profissionais da área médica (WAJMAN, 2021). Simultaneamente, a psicóloga Cândida Helena Pires de Camargo também contribuiu para a introdução da Neuropsicologia no país, por meio do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Diversas associações científicas brasileiras têm promovido o avanço da Neuropsicologia, como a Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (ABENEPI), fundada em 1967; a Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp), criada em 1988; a Associação Brasileira de Neuropsicologia (ABRANEP), instituída em 2002; e o Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Comportamento (IBNeC), criado em 2009. Essas entidades têm desempenhado papel relevante no desenvolvimento da área (ABENEPI, 2024; HAZIN et al., 2018; IBNEC, 2024; SBNP, 2024).
Desde o início, a Neuropsicologia destacou-se por sua abordagem multidisciplinar. Inicialmente não havia formação com título oficial, mas sim grupos de estudo compostos por diferentes profissionais, que resultaram em expressiva produção científica. Esse movimento favoreceu a ampliação da oferta de cursos de formação, impulsionada pela demanda de profissionais da saúde mental. Como consequência, a Neuropsicologia passou a integrar a grade curricular obrigatória de diversos cursos de Psicologia no país (HAZIN et al., 2018).
O reconhecimento oficial da Neuropsicologia como especialidade da Psicologia no Brasil ocorreu apenas em 2004, com a publicação da Resolução CFP n.º 2/2004, que regulamentou a concessão do título de especialista aos profissionais qualificados, reforçando o crescimento da área (CFP, 2004). Esse marco também estabeleceu critérios para o registro profissional, visando assegurar a qualidade dos atendimentos (CFP, 2022).
A formação em Neuropsicologia pode ter início na graduação em Psicologia ou por meio de especializações em cursos de pós-graduação destinados a profissionais já formados. Os cursos são voltados, em geral, para profissionais da saúde e da educação, como psicólogos, médicos, psicopedagogos e fonoaudiólogos, e abrangem temas como neuroanatomia, neurofisiologia, neuropsicologia clínica, avaliação e reabilitação neuropsicológica (PEREIRA, 2017).
Wajman (2021) destaca que os cursos de formação em Neuropsicologia devem contemplar disciplinas e conteúdos exigidos em exames de título ou programas de especialização, incluindo processos neuropsicológicos básicos e seus modelos teóricos, substratos neuroanatômicos, alterações cognitivas, psicometria, pesquisa, ética profissional, semiologia clínica, elaboração de laudos e estratégias de intervenção. Esses elementos formam a base teórica e prática para o exercício ético e cientificamente fundamentado da profissão.
Em uma pesquisa documental, Pereira (2017) analisou os currículos de cursos de pós-graduação em Neuropsicologia no estado do Rio de Janeiro e identificou variações relevantes na carga horária e na distribuição das disciplinas, com implicações diretas para a prática profissional. Essa heterogeneidade está associada à autonomia metodológica, pedagógica e curricular das universidades, conforme previsto na Resolução CFP nº 1/2007. Contudo, a falta de uniformidade nos conteúdos pode comprometer a formação, especialmente em cursos que priorizam conteúdos de neurociência e transtornos mentais, em detrimento de temas como avaliação e reabilitação. A fragmentação e imprecisão na oferta desses conteúdos também foram apontadas por Pereira (2017) como obstáculos significativos.
Embora diversos países tenham desenvolvido modelos próprios para o ensino e o treinamento em Neuropsicologia, historicamente a Neuropsicologia Clínica tem falhado em estabelecer princípios consensuais e consistentes de formação. Cabe às autarquias federais, aos conselhos regionais, aos pesquisadores e às entidades científicas promover a padronização da formação e a garantia da qualidade dos currículos ofertados (WAJMAN, 2021). Na prática clínica, áreas como Fonoaudiologia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Psiquiatria e Educação contribuem para o estudo da Neuropsicologia, o que representa um desafio à formação do(a) neuropsicólogo(a), que necessita adquirir conhecimentos específicos de cada uma dessas áreas (PEREIRA, 2014).
A Resolução CFP nº 1/2007 estabelece diretrizes para o funcionamento de cursos de pós-graduação lato sensu, concedendo às instituições de ensino superior autonomia pedagógica e curricular. No entanto, essa diversidade pode impactar a prática profissional, sobretudo quando profissionais de outras áreas buscam especialização em Neuropsicologia e encontram dificuldades no uso de instrumentos específicos dos psicólogos (HAASE et al., 2012).
Conforme a Resolução CFP nº 002/2004, o profissional da Neuropsicologia atua no diagnóstico, acompanhamento, tratamento e pesquisa de aspectos cognitivos. Para isso, integra conhecimentos das neurociências com diferentes áreas da Psicologia, como a clínica, a cognitiva, a do desenvolvimento, a do envelhecimento, a psicometria e a psicolinguística, utilizando metodologias experimentais e clínicas e uma variedade de instrumentos padronizados, como entrevistas, testes, escalas, observações e tarefas cognitivas.
A formação em Neuropsicologia também tem relevância para outras áreas, como a Fonoaudiologia. As diretrizes curriculares desse curso preveem formação generalista, o que permite o contato do estudante com a Neuropsicologia durante a graduação. Essa vivência inicial pode despertar interesse por especializações ou outras formas de formação continuada (BRASIL, 2020). Um estudo conduzido por Brasil et al. (2020) identificou que, embora a Neuropsicologia seja reconhecida como especialidade na Fonoaudiologia, apenas 12,5% das instituições de ensino superior investigadas ofertavam disciplinas sobre o tema, e, dessas, três eram optativas, o que evidencia uma lacuna na formação dos fonoaudiólogos.
Apesar de recente como especialidade, a Neuropsicologia enfrenta desafios para a difusão do conhecimento entre áreas profissionais. Entretanto, a atuação multiprofissional é essencial para os processos diagnósticos e a elaboração de planos de intervenção interdisciplinares. A colaboração entre profissionais contribui para intervenções mais eficazes, voltadas à melhoria da qualidade de vida dos indivíduos atendidos (PEREIRA, 2014).
Considerando o exposto, o presente estudo pretende analisar os currículos de instituições de ensino superior no estado de São Paulo, a fim de verificar a presença ou ausência da disciplina de Neuropsicologia, bem como suas principais características.
METODOLOGIA
Por se tratar de um estudo documental, não foi realizada submissão ao Comitê de Ética. Inicialmente, foi levantado quais universidades e instituições de ensino localizadas no estado de São Paulo ofereciam o curso de Psicologia. Essa busca foi realizada por meio do site oficial do Ministério da Educação e Cultura (MEC), que disponibiliza a listagem de universidades e faculdades públicas e privadas credenciadas.
Em seguida, os dados foram organizados em uma planilha do Excel, contendo o nome das instituições localizadas no estado de São Paulo. A partir disso, investigaram-se informações referentes à oferta de disciplinas relacionadas à Neuropsicologia, como nome, carga horária, modalidade (presencial, EaD ou híbrida), semestre de oferta e ênfase teórica ou prática. Esses dados foram obtidos por meio dos sites oficiais das universidades e instituições de ensino superior, com base nos planos de ensino e nas matrizes curriculares dos cursos de graduação em Psicologia. O período de busca compreendeu o primeiro e o segundo semestres de 2024 e integrou as atividades de um projeto de extensão universitária com foco na Neuropsicologia.
Os dados coletados foram tabulados em uma planilha do Excel e, posteriormente, analisados por meio de estatística descritiva, utilizando o programa SPSS. Foram realizadas análises comparativas entre instituições públicas e privadas por meio dos testes do Qui-Quadrado e Exato de Fisher.
Os dados desta pesquisa abrangeram 132 instituições de ensino superior no estado de São Paulo, das quais 114 eram particulares (86%) e 18 públicas (14%). Entre essas instituições, 74 (56%) oferecem pelo menos uma disciplina relacionada à Neuropsicologia em sua grade curricular, enquanto 58 (44%) não a oferecem. A análise comparativa mostrou que a presença da disciplina ocorre em 55,6% das instituições públicas e em 56,1% das privadas. O teste do Qui-Quadrado não indicou diferença significativa entre os dois tipos de instituição (χ²(1) = 0,002; p = 0,963), sugerindo uma distribuição proporcionalmente semelhante.
A Tabela 1 apresenta as características das disciplinas de Neuropsicologia analisadas. Verificou-se que a oferta varia entre uma e quatro disciplinas ao longo do curso. O oferecimento de apenas uma disciplina é mais comum, representando 81% das instituições analisadas (n = 60). O teste Exato de Fisher não apontou diferença significativa entre instituições públicas e privadas quanto à quantidade de disciplinas ofertadas (p = 0,384).
Quanto ao semestre de oferta, verificou-se distribuição heterogênea ao longo do curso, com maior concentração entre o 3º e o 5º semestres, sem diferenças entre instituições públicas e privadas (Teste Exato de Fisher, p = 0,260). No que se refere à modalidade, predominou a oferta presencial (88%), seguida das modalidades a distância (8%) e híbrida (4%). Todas as disciplinas ofertadas em instituições públicas foram presenciais, enquanto as modalidades a distância e híbrida foram observadas exclusivamente em instituições privadas. Todavia, o Teste Exato de Fisher não revelou diferença estatisticamente significativa entre os dois tipos de instituição (p = 1,000).
Por fim, em relação ao enfoque teórico-prático, verificou-se predominância de disciplinas classificadas como teóricas (27%) ou não especificadas (62%). Disciplinas exclusivamente práticas foram raras, tendo sido identificada apenas uma em instituição pública. Já aquelas que combinavam teoria e prática corresponderam a 9% do total, sendo mais frequentes em instituições privadas. A análise comparativa apontou diferença estatisticamente significativa entre públicas e privadas quanto ao enfoque das disciplinas (Teste Exato de Fisher, p = 0,022).
Tabela 1 - Distribuição de frequência das características das disciplinas de neuropsicologia nas instituições analisadas.
Quantidade de disciplinas |
Frequência (f) |
Porcentagem |
01 |
60 |
81 |
02 |
11 |
15 |
03 |
2 |
3 |
04 |
1 |
1 |
Semestre |
Frequência (f) |
Porcentagem |
01 |
2 |
3 |
02 |
4 |
6 |
03 |
11 |
15 |
04 |
14 |
19 |
05 |
11 |
15 |
06 |
9 |
13 |
07 |
7 |
10 |
08 |
4 |
6 |
09 |
4 |
6 |
10 |
6 |
8 |
Modalidade |
Frequência (f) |
Porcentagem |
Presencial |
65 |
88 |
EAD |
6 |
8 |
Híbrido |
3 |
4 |
Teoria e prática |
Frequência (f) |
Porcentagem |
Teórica |
20 |
27 |
Prática |
1 |
1 |
Teórica e prática |
7 |
9 |
Não especificado |
46 |
62 |
Total |
74 |
100 |
Fonte: Próprio autor.
A Tabela 2 apresenta os nomes mais frequentes atribuídos às disciplinas relacionadas à Neuropsicologia. O nome mais comum é "Neuropsicologia", identificado em 58 casos (62%). Em seguida, destacam-se: "Avaliação em Neuropsicologia" (7 casos; 8%), "Fundamentos da Neuropsicologia" (6 casos; 6%) e "Estágio Supervisionado Básico em Avaliação Neuropsicológica" (5 casos; 5%).
Tabela 2 - Distribuição de frequência dos nomes das disciplinas relacionadas à neuropsicologia.
Nomes das disciplinas |
f |
% |
Neuropsicologia Fundamentos da Neuropsicologia Avaliação em Neuropsicologia Neuropsicologia, Neurociência e Cognição Avaliação e Intervenção em Neuropsicologia Estágio Supervisionado Básico em Avaliação Neuropsicológica Avaliação e Reabilitação Neuropsicológica Neurociências Aplicada à Psicologia Neuropsicologia: Ênfase Saúde Supervisão em Estágios Optativos: Neuropsicologia Neuropsicologia e Cognição Avaliação Neuropsicológica em Diferentes Contextos Psicofisiologia e Neurociência no Estudo do Comportamento e dos Processos Mentais Avaliação Psicológica: Fundamentos e Processos Neuropsicológicos Neurociências Cognitivas Práticas em Neuropsicologia Estágio Específico Supervisionado em Avaliação e Intervenção em Neuropsicologia I Neuropsicologia e Psicomotricidade Neurociência Cognitiva e Reabilitação Neuropsicologia: Processos, Aprendizagem e Inteligência |
58 06 07 01 02 05 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 |
62 06 08 01 02 05 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 |
Total |
93 |
100 |
Fonte: Próprio autor.
Este estudo teve como objetivo analisar as características das disciplinas de Neuropsicologia presentes nos cursos de Psicologia do estado de São Paulo, considerando sua presença, carga horária, modalidade, momento de oferta no curso e enfoque teórico/prático. A análise documental dos currículos de 132 instituições de ensino superior evidenciou que, embora a maioria das instituições ofereça pelo menos uma disciplina relacionada à área, ainda há grande diversidade na nomenclatura, na carga horária e nos conteúdos abordados.
Entre os principais resultados, destaca-se que 56% das instituições oferecem disciplinas de Neuropsicologia, sendo que a maior parte delas contempla somente um componente curricular vinculado ao tema. A predominância de disciplinas com enfoque teórico e modalidade presencial sugere que o ensino da Neuropsicologia na graduação ainda segue um modelo tradicional, centrado na transmissão de conteúdos conceituais. Esses dados dialogam com estudos anteriores que apontam para a escassez de práticas formativas integradas e o predomínio de abordagens fragmentadas na graduação (PEREIRA, 2017; WAJMAN, 2021).
A diversidade de nomenclaturas identificada reforça a ausência de diretrizes curriculares específicas para a área, o que dificulta a padronização do ensino e compromete a comparabilidade entre instituições. Conforme apontado por Haase et al. (2012), a falta de uniformidade nos conteúdos e estruturas curriculares da Neuropsicologia pode gerar formações desiguais, com implicações diretas para a atuação profissional.
A ausência de diferenças significativas entre instituições públicas e particulares na presença, quantidade, semestre e modalidade de oferta sugere que as características identificadas no ensino da Neuropsicologia são estruturais, não se restringindo a um tipo específico de instituição. A única diferença encontrada refere-se ao enfoque das disciplinas. Enquanto nas instituições públicas predominam componentes exclusivamente teóricos ou práticos isolados, nas privadas há maior frequência de disciplinas que integram teoria e prática. Esse resultado pode refletir iniciativas de adaptação curricular das instituições privadas em resposta a demandas do mercado educacional, embora ainda de forma incipiente e sem caráter sistemático.
Esses achados têm importantes implicações para a formação do(a) profissional da Psicologia. A Neuropsicologia é uma área reconhecida oficialmente como especialidade desde 2004 (CFP, 2004), e sua atuação exige sólida base teórica e prática, bem como domínio de instrumentos específicos de avaliação e intervenção. No entanto, a oferta reduzida de disciplinas, a escassez de componentes práticos e a fragmentação dos conteúdos podem limitar o desenvolvimento de competências essenciais para o exercício ético e qualificado da Neuropsicologia na prática clínica, educacional ou institucional.
Considerando esse cenário, é importante que os cursos de graduação em Psicologia avancem na consolidação de uma estrutura curricular mais coesa e abrangente para a área. Uma proposta ideal incluiria, no mínimo, dois componentes curriculares obrigatórios: um voltado aos fundamentos teóricos da Neuropsicologia (incluindo neuroanatomia funcional, funções cognitivas e modelos teóricos) e outro direcionado à prática em avaliação e intervenção neuropsicológica, preferencialmente com atividades supervisionadas. Além disso, seria desejável a oferta de disciplinas optativas ou estágios específicos para aprofundamento, bem como a integração com outras disciplinas, como Neuroanatomia, Neurofisiologia, Psicologia do Desenvolvimento, Psicopatologia, Psicometria e Avaliação Psicológica. Outra sugestão seria a oferta de cursos e atividades práticas de extensão, como demonstram iniciativas descritas na literatura (ARCENO et al., 2022; PINHEIRO et al., 2022; ROAMA-ALVES, 2020; SOUZA et al., 2023).
No contexto internacional, essa discussão também tem sido fomentada, ainda que com diferenças estruturais nos processos formativos em Psicologia e na pós-graduação. Por exemplo, Smith e CNS (2015) enfatizam a importância de uma trajetória formativa integrada e progressiva em neuropsicologia clínica, iniciada ainda na graduação e consolidada ao longo da especialização. Os autores argumentam que a aquisição de competências fundamentais depende de diretrizes claras, conteúdos padronizados e experiências práticas supervisionadas desde os estágios iniciais da formação.
De forma complementar, Karazsia et al. (2013) destacam que candidatos mais bem avaliados em processos seletivos para programas de pós-graduação em neuropsicologia tendem a apresentar experiências acadêmicas e práticas na área já na graduação. A presença de disciplinas específicas e a participação em estágios supervisionados são apontadas como diferenciais relevantes na trajetória formativa desses estudantes. Esses dados reforçam os achados do presente estudo, indicando a necessidade de fortalecer, desde a formação básica, a articulação entre teoria, prática e iniciação científica como estratégia para qualificar o ingresso e a permanência dos estudantes na área da Neuropsicologia.
O presente estudo possui algumas limitações. A principal refere-se à natureza documental da análise, baseada essencialmente em informações públicas disponibilizadas nos sites das instituições de ensino. Isso implica a possibilidade de ausência ou desatualização de dados curriculares, o que pode impactar a completude das informações analisadas. A ausência de entrevistas com coordenadores de curso ou análises qualitativas de todas as ementas pode restringir a profundidade das interpretações. Além disso, o estudo não avaliou aspectos qualitativos da formação, como metodologias de ensino, práticas supervisionadas ou percepção dos estudantes e docentes, aspectos fundamentais para compreender a efetividade do ensino da Neuropsicologia na graduação. Dessa forma, os resultados devem ser compreendidos dentro desse escopo metodológico, sendo recomendável que futuras investigações incluam tais estratégias para ampliar a discussão sobre os achados.
Apesar dessas limitações, os resultados contribuem para o mapeamento atual da formação em Neuropsicologia nos cursos de Psicologia no estado de São Paulo e apontam caminhos para o aprimoramento das diretrizes curriculares, em consonância com as demandas da prática profissional e os avanços teóricos da área.
Os resultados obtidos nesta pesquisa indicam uma presença significativa das disciplinas de Neuropsicologia nos cursos de formação em Psicologia no Estado de São Paulo. A predominância de disciplinas presenciais e com ênfase teórica sugere que o ensino da área ainda segue uma abordagem tradicional, com foco nos conteúdos conceituais, em detrimento da prática aplicada.
Observou-se, entretanto, uma grande diversidade de nomenclaturas utilizadas para nomear os componentes curriculares e uma ausência de padronização quanto à carga horária e aos conteúdos abordados. Esses aspectos representam desafios para a formação dos futuros psicólogos e psicólogas, podendo comprometer a uniformidade e a profundidade dos conhecimentos adquiridos na área.
Dessa forma, destaca-se a necessidade de revisão dos currículos das graduações em Psicologia e da adoção de diretrizes mais claras, coesas e integradas que orientem a inclusão da Neuropsicologia como um componente formativo sólido e padronizado. Essa medida se mostra essencial para o fortalecimento da especialidade no contexto acadêmico e para uma melhor preparação dos estudantes frente aos desafios teóricos e práticos que encontrarão em sua atuação profissional.
Consolidar uma formação estruturada em Neuropsicologia pode contribuir significativamente para o desenvolvimento de competências técnicas e éticas fundamentais à prática clínica, de pesquisa e de intervenção. Além disso, reforça-se a importância de que futuros estudos ampliem a investigação para outros estados brasileiros, incluindo análises qualitativas sobre a percepção de docentes e discentes, bem como comparações com a estrutura curricular de cursos em países onde a formação em Neuropsicologia encontra-se mais consolidada.
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Recebido em: 21/07/2025
Publicado em:16/09/2025